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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

NOITES DO RESTELO



Foto de Daniel Cordeiro Costa.
NOITES DO RESTELO

Sem se desconcertar e porque não podia estar em descanso, deu início a uma nova tarefa. Teria apenas a duração de um mês.
Foi apresentada e dourada, como de chefia, cargo que podia condizer com o perfil de João Moisés, mas decididamente não, logo não podia ser assumido na plenitude. No entanto a dedicação ao que havia a fazer, em qualquer circunstância, era uma faceta da sua personalidade.
Os tempos eram agora muito difíceis, até porque João Moisés havia subido a um patamar social de certo nível, muito para além do próprio meio, onde agora se movimentava, não obstante as mutações observadas, enquanto procurava nova integração.
No princípio dos anos setenta, constatava-se não haver falta de trabalho indiferenciado, mas sim lacunas de qualificações e evoluções geradas por esta. Várias vezes foi ouvido:
- Não nos serve, queremos alguém sem qualquer qualificação e como hoje os bons lugares estavam reservados a clientelas políticas, cujos dotes estão apenas num cartão de filiado.
No tempo dos afilhados podia só saber pensar, mas eram afilhados!
Porém, uma vivência rica pode ser feita de experiências, mas aconteceu que, no mês quatro de setenta, chegou ao trabalho numa empresa que dava pelo nome de Centro Técnico de Desinfecções. 
O cargo era mesmo de chefia, o que dava direito a carro para condução própria de trabalho e recolha de outros empregados, a qualquer hora do dia ou da noite, assim como para transportar os materiais necessários para executar tarefas exteriores.
Não havia qualquer horário de trabalho específico, podia acabar-se um ás quatro da manhã, vinha-se para casa e logo ás onze um telefonema do escritório e… lá estava outro serviço.
A entrada processou-se num dia de chuva miúda, de tal modo que o campo de visão era restrito. O começo iniciou-se com algumas instruções do própria patrão sobre a carrinha “Citroen” que, cabia a João Moisés conduzir.
Deu como resultado, talvez também por falha nos travões, embater num autocarro da Carris estacionado, cujo não sofreu danos, porém a carrinha ficou um pouco amolgada.
O trabalho do dia ficou por aí, mas à noite a casa a chamada: Havia que efectuar a limpeza e desinfecção de todas as instalações de um afamado restaurante de Cascais.
O serviço foi executado de madrugada e até nem correu mal para início. Culminou com uma mesa cheia de boas gambas, para todo o pessoal da desinfestação. Alguns colegas eram alheios ao trabalho, mas fingiram bem, pois tinham sido convocados, por causa do costumado “banquete” e como prémio da empresa prestadora daqueles serviços, a que pertenciam de facto, mas noutro ramo.
A seguir, calhou uma operação interessante, a desinfecção de um grande casarão nas arribas da praia de S. Bernardino, perto de Peniche. Tinha sido mandado construir havia pouco, por uma senhora americana.
Criadagem havia para quase todas as dependências e era bastante visível.
A vagem foi feita no “ Mercedes” do próprio patrão, que comandou o que não seria necessário, mas terá aproveitado para viajar até à vila piscatória de Peniche onde, terminado o trabalho houve o almoço, com a lógica liquidação pela firma.
Contratações, eram diárias, por vezes de dia e à noite, para o caso de restaurantes ou hotéis. Alguns destes eram conhecidos de João Moisés, que ficava com a estranha sensação que se os clientes conhecer as unidades, na acalmia da noite, ficariam enojados de terem feito ali qualquer repasto.
O engraçado é nunca se ter feito a desinfecção em tascas e mesmo assim!... Baratas eram tantas, nem se sabia onde havia espaço para se esconderem da luz do dia, tanta bicharada!...
Certa madrugada, bem de madrugada, depois de um serviço de desinfecção a duo, conduzindo a carrinha, deixou o colega em casa, em Valejas e apanhado a auto-estrada de Cascais, por volta da bifurcação para Benfica, chegou a fraqueza em forma de leve sono, que passou ao lado, mas suscitou susto.
Deu para ficar desperto, até finalmente descansar por quanto tempo?
Não haverá vivências: O homem é que as faz. Decididamente, a ocupação era engraçada, pondo de parte aquilo, a que se achava ser exploração laboral, para posto de observação era óptimo, mas como as ambições estavam noutro lado, por elas continuava a lutar.
Certo dia a convocação chegou, para a limpeza dos insectos de um hotel de Sagres, estadia de três dias no mesmo, para o que se havia de ir preparando. Trabalho de noite, durante o dia descanso, com algumas idas à praia e a observação como a indústria de turismo ia chegando a todo o Algarve.
Estávamos ainda em 1970, deu-se a viagem no “Mercedes”, do patrão, com este a mostrar a excelência duma condução feita num daqueles caros topo de gama e a estadia, mais uma vez era adoptada por este, tanto mais que desta vez era de conta do hotel.
Os dois empregados ficaram instalados nos quartos de dormir destinados a motoristas particulares, eram óptimos.
Para as refeições foi destinada sala própria, sendo o serviço igual ao de todos os funcionários de cozinha. Havia sido destinado um rapaz dos seus quinze anos, a servir tudo o desejado, disse ser destacado e para receber todas as ordens nesse sentido.
João Moisés, já se instalara em diversos hotéis, porém um tão eficaz atendimento de restauração nunca tinha conhecido.
O trabalho só se processava à noite, porque para ser diurno, teria de haver interrupção dos serviços a prestar ali.
Chegou a vez de se fazer uma desinfecção a uma pousada a uma pousada no litoral alentejano, após trabalho nocturno, um serviço e uma experiência também interessante.
Na volta para Lisboa, o almoço processou-se num restaurante de Santiago do Cacém.
Afinal quem comandava, nunca tinha sido João Moisés e o colega, antes da liquidação, informou ser usual mandar fazer factura com uma quantia mais elevada, ficando o suplemento a distribuir pelos comensais intervenientes.
A firma pagava após serem apresentadas contas.
Depois, o que andava a ser equacionado passou-se naturalmente. Não tinha decorrido trinta dias e era apresentada a renúncia. A patroa a comandar a retaguarda, no escritório, mostrou zanga, o patrão mostrou o seu indesmentível bom relacionamento e afirmou:
- Apesar de ver em si, sempre bom funcionário, observando-o e reparei que este tipo de trabalho estava longe das suas aptidões e justas aspirações, razão porque não lhe cheguei a entregar a chefia como o pretendido e para a qual o havia contratado.

Daniel Costa

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