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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

UMA GRÁFICA E O CLERO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
UMA GRÁFICA E O CLERO

Numa empresa, com pretensões a tornar-se moderna tornava-se urgente tomar outros caminhos, mesmo vivendo num regime fascista, cuja propaganda oficial, lhe chamava Estado Novo. Não podia ser dominada por uma sociedade clerical do tempo, como se verificava.
Demais na indústria gráfica, o sector da sociedade, onde maior evolução se notava. 
João Moisés observava que ali ao invés do que era corrente, em conversas mesmo que não fossem de trabalho, referia-se o administrador, como o Senhor Director… o Senhor Doutor e por aí fora. 
Mundo estranho aquele!...
Bem se pode saber que o edifício ainda era habitação de freiras, eram tratadas por irmãs, uma chefiava a encadernação, outra a loja de paramentos, santinhos, hóstias, secção de pessoal dirigida por um sacerdote, etc.
O Jornal Novidades, que reflectia as tendências do Patriarcado, tinha ali a sua sede e era dirigida das mesmas instalações por um eclesiástico, monsenhor Moreira das Neves.
A revista Flama, do mesmo grupo sedeada ao virar da esquina, na Rua Rodrigues Sampaio, executada também na União Gráfica e dirigida por António Reis, é que parecia querer trilhar caminhos mais modernos, os próprios trabalhadores, onde se contava o desenhador Manuel Vieira que, fora autor o boneco Zip Ziz, do célebre programa de televisão do mesmo nome, a dar mostras de anti religiosidade, mostravam um certo distanciamento, relativamente ao que dissesse respeito à casa mãe.
O mal menor seria a presença de elementos afectos à Opus Dei, mas esses estariam mais virados a inovações, de que uma grande gráfica havia de trilhar por força.
Tal como sempre, pelo menos depois de Gutenberg, o meio gráfico tinha de se posicionar, como a principal alavanca de progresso e elevação da sociedades.
Tentativas feitas para elevar a empresa eram letra morta, à partida estavam marcadas para uma espécie de selo de insucesso, redundavam assim em retrocesso.
Definitivamente, o Patriarcado tinha colocado ali os anti corpos, os pequenos poderes constituídos pelos afilhados, como o eram por exemplo, ex seminaristas. 
Grande parte dos clientes vinha do clero o que à época não ajudaria. Recorda-se o pároco da freguesia das Mercês, em Lisboa, o padre Marques Soares que, sendo fervoroso do culto de Santa Teresinha ali implantado, editava e dirigia uma publicação periódica, denominada precisamente Rosas de Santa Teresinha, que mandava executar na empresa da Rua de Santa Marta.
Da mesma constava uma secção de correspondência, normalmente eram cartas vindas do Portugal de Angola, naturalmente de gente colocada em missões. Delas faziam parte relatos de milagres, nascidos de factos tão comezinhos que, podiam mesmo nem ter lugar na categoria de incríveis, porque se baseavam em pequenas incidências diárias.
Só por si, o facto não traria grande admiração a João Moisés, que até já tinha passado por Angola e sabia como seria fácil um envelhecido missionário, isolado dum mundo em desenvolvimento, retroceder no foro intelectual, no entanto as respostas elaboradas pelo pároco das Mercês de Lisboa, constituíam uma coisa incrível, nem poderia haver já qualquer entidade celestial, que não tivesse o poder de perdoar tamanho atraso mental ou retrocesso, mesmo se visto com um olhar místico.
Coisas que não podiam agradar à mentalidade de João Moisés, que achando por muitas razões, não merecer que as divindades o tivessem conduzido àquele mundo, que não reflectia nem de longe o seu tempo.
A alimentação do ego situava-se na procura de futuras soluções, onde os seus conhecimentos deviam esvoaçar com melhor aproveitamento.
Por vezes também chegavam clientes representadas por pessoas causticadas com tanta mesquinhez, que vinham prontas para a dureza, como a Maria João Aguiar, ao serviço do Donas de Casa.
À índole pessoal rebelde, por natureza, acumulavam-se factores de desagrado. Encaminhada para João Moisés, desabafou e acalmou.. 
Assuntos resolvidos!... Acabou por tornar-se um prazer interagir com alguém do tempo.
Ainda pior chegou depois: Entrou-se na administração de um padre, monsenhor Assis, um homem forte e meio anafado. Estaria ali uma solução para a elevação da empresa?
Decididamente, nem pensar, tinha entrado mais retrocesso, talvez obra de demónio. Já se manifestavam os “reizinhos”, com quem promovia reuniões, no próprio passeio da rua, mesmo em frente da janela do departamento, os desabafos eram uma constante e finalmente estavam a ser recuperados velhos privilégios, com os inerentes poderes pessoais.
Monsenhor Assis tomara um poder principal, o de humilhar os de maior qualificação, com a ideia concebida de despedimentos, naturalmente investia primeiro contra os mais novos do quadro.
Feitas sondagens a respeito, uma irmã diria sem rodeio: não diga que veio ganhar mais de cinco contos?
Era a chefe da loja, ficou deduzido que seria a cifra do seu próprio salário!...
Com alguns vindos do Dafundo, era a ideia de refrescar a empresa, estava uma boa amiga. Abordada, ficara conhecida a apreensão que grassava naquela gente.
Definitivamente a chegada do clérigo, transformado em director, funcionava como a encarnação de um demónio. Coisas estranhas de um velho mundo!
Pouco tempo passou e João Moisés foi chamado ao serviço do pessoal, deu-se o que pensava, no fundo já o esperava!
- Ordem de despedimento!
Foi depois encaminhado a um senhor padre, este começou por dar conselhos, relativos ao despedimento, devia ser o psicólogo da turma!
Como estava a tratar, com quem se considerava da época! Este nada satisfeito pelo seu despedimento, tinha de partir para outra e era só no que pensava, no momento, abortou a abordagem da maneira seguinte:
Por favor, é melhor poupar retóricas, tudo será solucionado!... Jamais desejarei ver clérigos na minha frente, Deus acaba de perder um devoto!...
Nos pagamentos, uma outra freira, o dinheiro em cofre devia ser pouco, a irmão bonita como a apelidavam, era-o e diziam as línguas más, na clandestinidade teria um amante, fazia o seu papel de adiar o procedimento de pagar.
Que nada, se podem fazer despedimentos, logo devem prestar contas!...
- A veemência terá tido o efeito de fazer encolher a contabilista e João Moisés foi satisfeito.
Entretanto, tendo já passado pela grande provação, saiu!...


Daniel Costa

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