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domingo, 31 de dezembro de 2017

SANTO ANTÓNIO DE LISBOA



Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Rua do Vale de Santo António, onde se pode ver a capela de Santo António de Lisboa
SANTO ANTÓNIO DE LISBOA
O grande Santo nascido em Lisboa, tão venerado na cidade que realiza em sua honra marchas populares, na noite de doze para treze de Junho, em grande apoteose, não podia passar despercebido.
João Moisés, apesar de se achar evoluído, por ter começado a trabalhar desde muito novo, gostava deveras do elemento feminino. 
Estava instalado numa morada que se prestava aos mais arrojados pensamentos, ainda que vindos daí, mesmo assuntos de carácter religioso, eram de interesse para vasculhar, como vai ficar demonstrado.
Acontecia todos os dias passar algum tempo na sala dedicada ao atelier da anfitriã, onde trabalhavam várias costureiras, que já eram suas amigas, uma delas de certa idade, vivia ainda com o pai, sacristão na capela de Santo António, na Rua do Vale do Santo do mesmo nome.
Em conversa com a senhora, que também ajudava nos arranjos da igreja, veio a revelação surpreendente de que a mesma era a genuína e situava-se no exacto local onde, de facto nasceu o Santo casamenteiro.
A constatação era interessante para investigar, porque era dado como consumado o Taumaturgo lisboeta ter nascido junto à Sé, onde se encontra o grande templo que lhe é dedicado.
O assunto levou João Moisés a muitas pesquisas e afinal nenhuma dava a zona do Vale de Santo António, como o sítio do seu nascimento, no entanto nunca a sua mente deixou de achar verosimilhança no caso, muito pensou no que poderia ser uma hipotética verdade, que não é descabido fomentar e até propor, para uma moderna consideração.
Começou por ser imaginar nos longínquos anos do nascimento do Santo, em que o Vale poderia ser considerado perto da Sé, em que o caminho, de certa maneira curto, era feito a pé.
Pensando bem naqueles tempos, em que por ali tudo eram campos, o Convento de S. Vicente de Fora, onde fizera estudos, que como sempre se situava a meio do percurso, não custava admitir essa versão, que os vizinhos capela do Santo, no Vale tinham arreigada, tanto assim que se estava perante um templo minúsculo e menos pomposo do que o vizinho da Sé e de maior antiguidade, criado antes e também para assinalar o lugar do nascimento do que foi baptizado com o nome de Fernando e mais tarde a pregar em Itália, ao mesmo tempo que veio a Lisboa depor, em tribunal, pelo pai.
Tão bem terá feito a defesa que conseguiu provar a inocência do progenitor, livrando-o de uma condenação certa à morte. O caso faz parte da história da vida do pregador que jaz em Pádua, porque se fosse tomada como verdadeira, estava-se na presença de um invulgar caso do dom da ubiquidade.
A conjectura, não passará disso, mesmo tendo em conta a tradição local e o assunto analisado por alguém que se estava a dedicar ao estudo de todas as coisas, mesmo as vulgares a parecerem comuns, porque ninguém lhes dava importância, mas tinham por onde pegar.
Voltar a estar acordado, na grande mansão da Graça, era interessante porque ali, a par dos serões de cartomancia, muito haveria a contar, como o caso de um casamento e outro de uma espécie de mancebia.
Tratava-se de duas irmãs, uma mulher interessante, mas não bonita, casou com um rapaz a dever pouco à preciosidade de ter inteligência, a outra extraordinariamente bela, a tal ponto que o amante, homem de fortuna, acabou por gastá-la toda à conta daquele enlevo.
Apesar de não haver mulher que valha tal, o certo é que também muita gente daquele sexo contribuiu, para o rápido esbanjamento.
No fundo João Moisés, cuidando do seu futuro, divertia-se naquela verdadeira vida e lá descia, pelo menos, duas vezes ao dia para trabalhar e estudar, a íngreme Calçada do Monte, que leva ao Largo da Graça, mas achava-se fadado para observar os minúsculos actos que a própria labuta de relações públicas traziam à superfície.
Foi assim que, ainda na Rua das Portas de Santo Antão, ao tempo trabalhava numa dependência predial, por debaixo da antiga sede do Sport Lisboa e Benfica, num daqueles Bares de ginjinha, que aliás era de própria designação, a Ginjinha Popular. Não obstante, quando chegava a canícula funcionava e para isso estava preparado, o serviço de venda de capilés, salsaparrilhas, groselhas, bem como limonadas, tudo dissolvido em água com soda, em copos bojudos, de vidro muito grosso.
Era nesse tempo que sempre aparecia um dos porteiros do Clube, homem forte e de grande vozeirão, pedia invariavelmente um capilé à Benfica, numa repetição diária, que o tornava engraçado, enquanto fazia propaganda às virtualidades que achava do Clube seu patrão.
Passava por ali muita classe de gente, um ensaio feito e logo aprendido, é que não se podia guardar fosse o que fosse de qualquer forasteiro, dos muitos que vindos de fora, que aportavam ao local.
Era o tempo da Guerra Colonial, pelo que a senhora dona Censura se mostrava tenebrosa, até mesmo nesses aspectos.
Aquele tipo de policia, sem se dar a perceber, estava sempre presente pelo que nunca se sabia quem era quem, num sítio onde passava todos os tipos de gente.
Já tinham acontecido factos inacreditáveis, no aspecto, embora não se passando mais do que serem levados a interrogatório alguns clientes, que apenas ficavam com ficha na PIDE.
Depois, o João Moisés teve ocasião de observar uma tentativa de jogo da vermelhinha, era uma época em que uma nota de cem escudos se tornava quantia interessante, para aquele verdadeiro conto do vigário.
Passou assim: Um par de homens entrou e solicitou ser servido com ginjinhas de cinquenta centavos. A tentativa de pagamento foi feita com uma cédula de cem, depois de estar o troco pronto, um dos comparsas lá arranjou a moeda de escudo, para a liquidação, então preparava-se para ficar com a nota primitiva e o respectivo troco.
Deu-se de imediato e intuitivamente a descoberta da tentativa de logro, sendo abortada a bem congeminada vigarice.
Desde que abraçara a vida de Lisboa e como só se entendia bem na cidade, onde lhe agradava passar despercebido, tinha terminado uma relação amorosa que ainda possuía na zona de origem.
O trabalho não era encorajador para novos intentos, porque era apenas preenchido pelo género masculino, mas conseguiu a sua primeira namorada, que talvez por imaturidade citadina depressa o trocou. Convém verificar que como não havia chegado a revolução sexual, nem mais ou menos, a abordagem era mais complicada.
Na escola arranjou uma namorada, nada devia a uma mente bem esclarecida, como conviria e depressa teve de ser esquecida, nem o nome Emília dizia algo, já que João Moisés era exigente.
A seguir, foi mesmo ao balcão que catrapiscou uma nova miúda, acompanhada por familiares, a quem veio a conquistar algum tempo depois, em separado, era a Joana e tudo corria bem. Parece que se haviam encontrada duas almas gémeas, mas ainda não seria o fim dos derriços, apesar de o namoro parecer reunir condições para frutificar.
Refira-se que, até então tudo não passou de entendimentos entre jovens, à moda daqueles tempos, porque actualmente, namoro equivale de imediato a uma vida a dois, sendo que os processos de agora, se tirar fora os excessos são mais atraentes, evitando muitos sofrimentos, afinal escusados.
Nessa época, sempre se apresentavam muitas noivas vestidas de branco, que escondiam o seu desfloramento das vistas do público, com um manto constituído também pelo tradicional ramo de flores de laranjeira, o sinal certo que evidenciava a consumação do matrimónio apenas na noite de núpcias, só depois da indispensável bênção divina.

Daniel Costa

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