O MUNDO DAS FOTOGRAVURAS
Foi sem qualquer preparação técnica, que João Moisés realizara o sonho de se tornar empregado de escritório.
A certa altura deu consigo a controlar todo o expediente de entrada de originais, para a execução de zincogravuras e da saída das mesmas, depois de prontas as obras.
Uma ocupação interessantíssima, que o conduziria a conhecer todo o maravilhoso Mundo das Artes Gráficas, incluindo o dos próprios jornais, à altura a indústria dominante de todo o Bairro Alto.
Naquele meio estavam a passar-se lances interessantes, pelo menos para quem gostasse de ocorrências consideradas menos vulgares, dignas de serem seguidas com atenção, por ser ter dado ainda havia pouco o início de segunda metade do século XX, com um país real considerado de analfabetismo confrangedor, muito notado até no meio de oficinas onde se dava o florescimento da cultura.
Ao tempo era nas gravuras que podiam começar os livros, assim como iniciativas conducentes à criação de muitas outras obras de impressão, como as grandes campanhas publicitárias criadas em Agências próprias, que depois as faziam distribuir por jornais e revistas, para atribuírem ao produto a necessária visibilidade.
Isso fazia parte, regra geral, da grande azáfama desenvolvida, o interessante eram as peripécias ocasionadas no dia a dia.
Começo, pelo chefe de escritório, tudo leva a crer que sofreria de uma doença muito em voga, a esquizofrenia, por outro lado teria tendência a ser delator, sobretudo de chefes a superintender nas oficinas, portando técnicos com alguma classificação.
Algumas vezes mesmo sendo admoestado, por sócios gerentes, levou bastante tempo a insistir, até que aprendeu a lição, não era que fugisse à verdade, mas devia reparar que estava a pôr em casa a própria administração, a quem cabia zelar pela boa harmonia de toda a produção.
A personagem em questão, dava pelo nome de Moura Jorge e a sua malévola estrutura mental, quiçá o seu negativismo já tinha dado origem a alguns pedidos de demissão de alguém, a quem bastava o trabalho para lutar. Na primeira oportunidade apresentavam a renúncia, porque não estavam aturar maus fluidos.
Aconteceu que João Moisés pela sua docilidade, podia dizer mesmo jeito para as relações humanas, passou a ser tratado pelo chefe com grande deferência.
Muitas vezes desceram ambos o Chiado e havia dias em que Moura Jorge, passava o caminho apenas a maquinar o desdobramento dos números do totobola para jogar com acerto, sendo o fim em vista a riqueza que o levaria a poder abandonar aquele emprego considerado execrável, pelo facto de ter ficado excluído de dar palpites, que refutava de inerentes à sua condição na chefia do escritório.
No entanto, dava para aprender muito com ele, pela negativa claro! Magicava grandes evoluções, uma altura pensou em desenvolver o seu francês e nada melhor que oferecer morada a uma professora da língua, em troca de lições pessoais daquele idioma.
Para uma dessas sessões convidou o novo subordinado. A docente depressa opinou que aquele conhecia mais do idioma que o aluno efectivo.
As relações, como seria fácil de prever, não eram muito católicas, pela razão simples de várias ausências da mestra, que parecia mais meretriz do que professora de francês.
Em resultado, o acordo foi efémero.
O totobola continuou semanalmente, lá vinha o matraquear habitual, a tripla estava sempre certa, o pior eram os símbolos duplos, que falavam muito, pelo que a independência económica nunca mais chegou.
Um dia deu entrada ao serviço daquele escritório um novo funcionário, como veio através da velha “cunha”, nada mais do que da herdeira de um sócio maioritário da casa, o rapaz de nome Martinho exibia uma péssima caligrafia, além das poucas qualificações para o desempenho do trabalho.
Mesmo assim o chefe nunca o hostilizou, sabia que isso seria o tratamento do seu fim, no entanto a confiança e a amizade dedicada a João Moisés, leva-o a comentar: Não é ainda este que me virá substituir!...
Apesar disso, de seguida demonstrou o talento do poder de negativismo humano, nem conjecturou o facto de nos cemitérios dar entrada diariamente cadáveres de insubstituíveis!...
Programou férias, comentando várias vezes para o colega de confiança, ser a maneira de repararem no vazio que constituiria a sua falta.
O programa tinha, por força de ser mau: Houve a necessária inter ajuda, como é habitual nestes casos e a gerência nem terá notado a sua falta, que não fez mais forçar a inevitável queda.
Queda que já era previsível, tanto mais que o sistema neurológico o levava a consultar periodicamente um médico do foro.
Não obstante, iniciara correspondência com uma Inglesa, com o objectivo de desenvolver o idioma. A súbdita da Rainha Isabel, sendo viúva de idade relativamente mais avançada e como estava descomprometida, depressa programou férias para Lisboa.
Logicamente foi o correspondente na capital de Portugal que tratou do aluguer da casa na cidade, onde havia de passar a seroar, enganando a própria esposa de que já tinha um filhote.
Entrou pois num namoro, suposto só ser conhecido em pormenor por João Moisés, o único colega confidente e a ter o privilégio de visitar a casa durante as férias, nunca falou a ninguém sobre o assunto, porém deu-se o caso de querendo fazer o papel de bom cicerone, levava a mulher até ao Largo de Camões onde, na hora do almoço, passavam sentados e enlevados, como dois adolescentes.
Sendo perto do local de trabalho, era uma evidente exposição da sua surpreendente mancebia, uma vez que se postavam muito próximo da Travessa das Mercês.
Logicamente que para ali se viravam muitos olhares dos passantes, alguns trabalhadores da empresa vindos da principal refeição, com espanto podiam observar o quadro.
Lisboa sempre albergou casos muito interessantes, embora haja a pretensão de divulgar alguns, o facto é que, quem sabe é sempre tudo é toda a humanidade, como diria um habitual cliente daquela verdadeira fábrica de zincogravuras, para todo o tipo de impressão, o dorminhoco Rocha de Oliveira, detentor já de respeitosa idade.
Sendo um típico alfacinha, enquanto esperava pelo acabamento da encomenda, o que acontecia amiudadas vezes, deixava os seus conselhos.
Depois, sentado no banco habitual, batia uma soneca!...
Daniel Costa
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