SANTA ENGRÁCIA
O Bairro da Graça, na sua vetustez, pertence á freguesia de Santa Engrácia. Com outros limítrofes, formam um conjunto da Lisboa antiga, digna de ser visitada demoradamente.
No Largo onde se formavam os carros eléctricos, um dava a volta partindo, para o Norte e outro para o Sul ambos, no se vai e vem, em jeito de circunferência por Campo de Ourique. Tinha sempre encontro marcado, em cruzamento, com partida daquele local, passando no Largo do Calhariz, que fica paralelo à Travessa das Mercês.
A caminho do trabalho, João Moisés sempre passava por ali, onde se formavam havia taxativamente muita gente a acotovelar-se, esperando a chegada de um veículo de transporte, depois uma interessante luta para entrar.
Decididamente, após andar cerca de mil e quinhentos metros para chegar aquele ponto, achava mais prático e rápido descer a Calçado do Monte e fazer todo o trajecto locomovendo-se a pé até ao escritório, nos confins do Bairro Alto.
Nesse trajecto atravessava todo o Rossio onde podia ver as letras luminosas do edifício de funcionamento de uma livraria de Diário de Notícias, no mesmo se projectavam essas a dar algumas notícias do dia. Uma espécie de Internet desses tempos. Já ouvira referenciar antes a notável cena.
Estava a morar numa casa onde, com um simples assomar à janela, usufruía a grande luxo de avistar o Tejo, mas a Graça continuou sempre a conter no seu perímetro muitos mais sítios do maior interesse, como o Museu da Água, na Rua do Alviela, à Calçada dos Barbadinhos.
Na freguesia vizinha de S. Vicente de Fora, fica a Igreja de Santa Engrácia do famoso Panteão Nacional. Na altura pelo facto da velha expressão, em certos casos de lentidão dizia-se muito: “É como as obras de Santa Engrácia”!... De facto a sua construção teve início em 1862, no lugar de uma antiga capela com a mesma designação e por vicissitudes várias, só terminou no ano de 1966.
Muito estará por realçar daquele outro centro de Lisboa, como o famoso Largo da Graça, situado numa das colinas da cidade com os seus com os seus naturais miradouros.
Na altura e ainda por muito tempo funcionava ali o grande Quartel da Graça, perto do Miradouro do mesmo nome.
Começa aí a Calçada do Monte, mais propriamente uma rampa que leva à Mouraria, seguindo depois para a Baixa.
Aproximava-se o fim da morada naquela distinta zona, que tem também como vizinhança a velha Alfama, por via de um futuro casamento. Viver a dois, segundo a lei da Santa Madre Igreja e a tradição, era a maneira libertária de se poder viver com uma mulher e gerar filhos, com a aprovação dos deuses.
O frenesim da cartomancia e as pressões tentaram influenciar as escolhas. Jogavam-se boas indicações económicas efectivas ainda, com laços familiares, mas a Rosário tornara-se coisa séria, a levar até ao fim do mundo.
O João Moisés cortara com todas as hipóteses, onde houvesse dúvidas sobre a “honra feminina”, uma condição que lhe era muito cara!... Usava-se!...
Assunto arrumado, o pensamento continuava no trabalho e nas muitas incidências no seio do mesmo, sobretudo no que dizia respeito a gráficas, afinal o mundo que pensava ter merecido conhecer. Parecia estar ali a génese de toda a actividade humana, era no fundo aquele o princípio do desenvolvimento da comunicação de massas, que o homem sempre desejou.
Muitas acções laborais, sem o parecer, mereciam muita atenção de quem alimenta os seus íntimos pensamentos, que a outros podiam parecer inócuos. Pobres deles!... Podia pensar-se, se o tempo não fosse sempre o grande mestre.
Estava-se no tempo do partido único, corporizado na designação de Acção Nacional, donde emanava o Estado Novo, comandado pelo tal “lente”, senhor António de Oliveira Salazar, com olhos e ouvidos a envolver toda a sociedade, como o caso que se passou na Graça. O João Moisés encontrou casualmente um indivíduo que fora seu colega na tropa, o que mereceu a confraternização à roda de uma mesa de Café.
Ao contrário do que era conhecido, numa demonstração provocatória, o antigo colega deu em representar de ébrio para o empregado que servia e sem que nada o fizesse prever, com ameaças de mau gosto, tirou do bolso e mostrou o seu cartão de informador da temível PIDE.
O revelado informador nunca mais foi encontrado, ficou a lição. Naturalmente o que interessava era incutir o medo.
Aconteciam muitos casos a indiciar o objectivo controle da polícia política, como o dos anúncios de jornal a promover o recrutamento de pessoas, que tivessem feito a vida militar, para as várias tarefas nas empresas e sobretudo nas universidades.
Tinha-se iniciado uma forte emigração, onde funcionava muito a clandestinidade, tráfico a que muitos se dedicavam e que conviria ao governo de Salazar. Só alguns iam parar a prisões políticas. Era dado o sinal contrário através de denúncias.
Era neste ambiente que passava uma certa corrupção, sempre em pequena escala. Afinal o chefe da oficina daquela empresa gráfica, além de inegável competência técnica, era altamente especializado em procurar alinhamentos por baixo, para melhor fazer o seu trabalho de controlo, o que lhe dava espaço para o seu “negócio” paralelo interno.
Nem tudo chegava ao filtro investigador de João Moisés, muita acções levadas a efeito, como o afã de angariar trabalhos, nomeadamente de offset, sabendo que a firma não tinha a necessária dimensão para os executar, mas feitos externamente de certo que trariam boas comissões, tanto mais que chamava a si a orientação.
A João Moisés cabia estabelecer todos os contactos e podia apurar, que os desenhadores de fora eram muitas vezes chamados a colaborar. Os clientes ouviam por tradição do grande chefe – “esses senhores debitam alto” – pelo que não sabia o que iria custar cada trabalho de desenho.
Filtrando também por ai, os respectivos artistas tinha de, à partida adicionar o custo de uma comissão destinada ao chefe, mesmo que a obra fosse de pequena dimensão.
Com todas as mais valias proporcionadas, por todos os bónus indevidos, nunca perdia ocasiões de afirmar que a entidade patronal não o remunerava consoante o seu valor técnico, porém a certa altura apresentou a demissão e de imediato foi vê-lo, à partida sem fortuna pessoal, a adquirir a sua própria empresa gráfica.
Daniel Costa
Sem comentários:
Enviar um comentário