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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

TRAVESSA DAS MERCÊS

Foto de Daniel Cordeiro Costa.

A TRAVESSA DAS MERCÊS

O aspecto de deixar a subida diária da Avenida da Liberdade, não significava melhoria no esforço quotidiano de João Moisés, ele era mesmo indomável a fazer grandes percursos a pé, mas a sua existência citadina melhorara a olhas vistos.
Saíra de um emprego, menos conceituado, de madrugada e era o primeiro a perfilar-se à entrada do escritório, onde ia principiar ocupação de outro relevo. Começava de novo do zero, embora tivesse andado a preparar-se, mental e intelectualmente, para desempenhar tarefa, de certo modo, mais elevada.
Tudo lhe parecia adequado, a empresa era de razoável dimensão, a perfeição nunca chegando a existir, tem de ser sempre a procurada por mentes irrequietas; é assim que deve ser encarado o mundo, onde se encontram figurões a tentar que o alinhamento se faça sempre por baixo, afim de tirarem partido das fraquezas.
Nunca havia desânimos para João Moisés, mas começou por sentir a insegurança de, nunca ninguém o ter posto ao corrente do trabalho a executar, porém em breve entendeu o que dele se esperava e assim deu início ao que lhe pareceu ser necessário fazer, para atingir o tal paraíso que encerrava a cidade de Lisboa.
Devido a uma questão de proximidade, relativamente ao local onde morava, já conhecia o arruamento chamado Paraíso, o tal que nunca deixou de procurar, mas o escritório de apoio à indústria gráfica com sede últimos números da grande Travessa, com grandeza mais própria para ser denominada Rua, estava longe de constituir esse espaço sideral.
Agora o Chiado era a grande encosta que, diariamente, acrescentara por duas vezes ao percurso e foi nesse, que um dia na volta atirou uma moeda ao ar. 
Como a mesma se comportasse assim decidiria, se sim ou não, a sua vida iria mudar de novo. 
Porque o diabo da peça numismática caíra com a face que previa alteração, afinal a pretendia, isto porque embora se passasse pela Travessa dos Fieis de Deus, para chegar ao escritório, o trabalho que se desejava harmonioso, para ser bem compreendido e depois frutificar, tornara-se um verdadeiro Inferno.
No dia seguinte, o João Moisés tal como indicou a face da moeda, foi ao “Diário de Notícias” e lá encontrou um anúncio a pedir empregado de escritório.
Respondeu e depois do horário laboral, com vários testes, que incluíram uma carta em francês, foi imediatamente admitido, ficando de apresentar no próximo dia o pedido de demissão, para passar à secretária do novo escritório de uma empresa de aprestos marítimos, ao Cais do Sodré.
Vertical, como prendia ser, acabou por logo no dia seguinte, via telefone apresentar escusa.
Passava-se o interessante, na Travessa das Mercês, por já ter dado nas vistas, então aquela renúncia caíra como uma bomba. 
Na tentativa de evitar a dissidência, houve reuniões ao mais alto nível, até de sócios, que João Moisés nunca chegou a conhecer pessoalmente.
Foi o douto Guarda-Livros, sim, porque nessa época nenhuma empresa funcionava sem esse alto quadro técnico, a encarregar-se de resolver a situação, em representação de todos os associados da empresa.
Embora já tivesse na mente o porquê, era patente, atirou uma pergunta a apontar, propositadamente, em sentido contrário, porém não estava em frente de um delator e recebeu como resposta um sorriso e a frase: Com esse até aprendi muito porque querendo mostrar os seus conhecimentos, em vez de levar a correcções directas, comentava os normais eros com: “Afinal julgava que era de certa maneira, mas estava enganado”!,,, Referia-se a ordens escritas, recebidas do escritório, num boletim de trabalho.
O refutado técnico deu-se por satisfeito, ficou com certezas.
De pronto deu mostras de ter resolvido o problema, que para ele se resumia a uma subida de mensalidade e atirou:
- Só dizes quanto queres ganhar mais por mês. Deixou assim o interlocutor sem imediata reacção, este ponderou que afinal a questão do trabalho lhe agradava, achava malévolas as interferências a degradar o ambiente.
Ficando certo, que estava a dialogar com quem tinha interesse em resolver a questão, pediu apenas um modesto aumento.
Pareceu tudo a contento, para o que terão contribuído todos os Fiéis de Deus, que davam nome à Travessa, onde se passou todo o diálogo.
A empresa não sofreu o revés de perder o servidor e este pareceu sentir-se mais seguro, porque aconteceu realmente deixar de ser, como que humilhado pelo chefe laboral, a personagem, que por conveniência pessoal, alimentava a confusão nos serviços de expediente, com a finalidade de alinhamento por baixo,
Tudo ficou realmente melhor, a muita labuta diária não assustava o novo funcionário. Trocava no entanto a possibilidade de continuar a frequentar aulas de liceu, pela mais valia remuneratória e das próprias horas extraordinárias, pagas a dezoito escudos e setenta centavos cada, que ficara com a autonomia de fazer, quando achasse necessário.
Como se isso não bastasse, o próprio chefe oficial, num determinado Sábado, à tardinha, fez-se encontrado e levou o novo trabalhador, do expediente de escritório. até à Cervejaria Trindade onde, entre uma amena cavaqueira, mandou encher uma mesa de marisco com umas imperiais, para que não ficassem dúvidas, nas boas relações ora encetadas entre ambos.
João Moisés também tinha tido em conta, a óptima colocação para investigar casos interessantes, porque afinal a obsessão por essa faceta, transversal a grande parte da sociedade, nunca podia ser abandonada.
No fundo, tinha sido despoletado um factor de agrado em toda a linha.
O lance, sem qualquer programação, vistas as coisas pelo lado positivo, mostrava-se deveras promissor e as diárias caminhadas, em duplicado, a pé do Bairro Alto até ao da Graça, continuaram na mesma, mas a serem encaradas com a típica alegria de viver, do homem que estava a gostar muito de palmilhar a Rua Garrett, na altura fervilhante de transeuntes, a proporcionarem casuais e agradáveis encontrões.
Era o saudoso Chiado da época, onde todos os dias à tarde se podia presenciar uma mostra, em passeio, da beleza feminina de Lisboa. Ainda funcionava o famoso café “Os Irmãos Unidos”, que passando ao rol do esquecimento, embora mantivesse exposta a famosa tela do poeta Fernando Pessoa, saída das mãos do memorável mestre Almada Negreiros.
As refeições eram, invariavelmente, tomadas em casa, após o que seguiam algumas leituras depois do jantar.
Por não haver em casa ainda aparelho de televisão, quando estava anunciado um programa de agrado, era dada uma saltada a um estabelecimento de café, para assistir à transmissão.
De regresso, muitas vezes, lá estava montada uma sessão amadora de leitura de cartas de jogar.
Vá lá saber-se a que existências eram dedicadas!... Talvez tivessem a ver com certa pessoa, suposto hóspede, que á vista era tratado como tal, mas era um privilegiado comensal.
Sabia-se que dormia com a dona da casa, mas tendo o seu dia de folga às quartas-feiras, passava-as com almoços e em de sessões de cinema, com uma elegante e antiga cliente do atelier de alta-costura da anfitriã.
Mesmo com muitas zangas, nesses dias, a vida continuava igual.
Ainda não chegara a liberalização do sexo, era assim que se procuravam manter as aparências em Lisboa.

Daniel Costa

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