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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

PARAÍSO DE BENFICA

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Foto de Daniel Cordeiro Costa.
O PARAÍSO DE BENFICA
Depois de João Moisés encontrar as condições económicas de entrar num clube mais avançado, o dos casados, que desde miúdo pensava ser o paraíso do Planeta Terra, o supremo eterno do mundo, visto que era o início de uma vida comum a dois, que mais tarde seria alargada e a dar-se uma separação só por interferência da irmã morte poderia acontecer.
Para o cumprimento perante Deus e os homens, a famosa igreja das Mercês sob o ministério do coadjutor do velho pároco, o Padre Marques Soares, deu-se a cerimónia religiosa do enlace.
Depois do longo, grandioso e tido como inevitável “buffet”, o casal viu-se, finalmente, a sós pela primeira vez.
Depois do transcendente acontecimento, a morada passou a ser nova, não muito longe do saudoso Café Paraíso de Benfica, talvez o mais antigo do Bairro e o último, do género, da Lisboa antiga.
Era bom presságio, para início de uma nova vida, tanto mais que se estava ali a desenvolver uma outra Lisboa, com um grande aglomerado de casas, tendo como base a Avenida do Uruguai e a então Estrada Poço do Chão, incluindo o que se veio depois a baptizar por Praça Artur Portela.
Acontece que a capital desse tempo, com a sua intrínseca grandeza, era em tudo uma sombra, a ponto de mesmo um faustoso lance matrimonial, não dar direito a mais de oito dias de férias, findas as quais João Moisés compareceu, obviamente, ao dever do serviço, não sem antes lhe vir à lembrança os tempos do Bairro da Graça, Aquela histórica casa onde deixou de viver e conviver, sobretudo do aparelho de telefone que a equipava.
Era composto por um mealheiro onde entrando, sob pressão, uma daquelas moedas de alpaca do valor de cinquenta centavos funcionava.
O sistema tinha a ver com a movimentação da casa e porque a economia do tempo obrigava a que fosse garantido o pagamento por quem utilizasse o serviço. No entanto em Benfica dispunha do seu telefone sem o incómodo do dispositivo.
Acabaram as caminhadas da Graça até ao posto de trabalho. Dali em diante, o paraíso de Benfica tornou-se, à ida para o escritório, ponto de partida para os muitos carros de tracção eléctrica que então serviam a freguesia, em acelerado povoamento. Como se isso não bastasse, relativamente perto desenvolvia-se a Brandoa na clandestinidade, cujos habitantes também ficavam sujeitos aquela estação para alancar o trabalho.
A azáfama de apanhar transportes, por toda a gente, começava logo pelas sete da manhã e as ruas que desembocavam próximo da igreja, onde quase na frente existia a estação e se iniciava a partida transformam-se, em verdadeiros formigueiros humanos.
Não podia dizer-se que faltavam meios, o que havia era já muita gente dependente deles, que dispunham apenas de uma via, a Estrada de Benfica, que começava na Avenida Duque D’Ávila, junto ao Governo Militar de Lisboa, acabando nas Portas, onde se inicia a Avenida Elias Garcia, já fora da cidade.
Começava então de manhã a verdadeira aventura de chegar ao trabalho, à hora nona ou antes, cuja abertura também fazia parte das obrigações de João Moisés.
Logo no primeiro Inverno, por sinal rigoroso, naturalmente por imperativos camarários, ou outros, uma vala foi aberta por toda a Estrada, então era ver carros eléctricos a preencher toda a via, em vários quilómetros de distância até à estação do metropolitano em Sete Rios, onde muitos mudavam de rota, para a baixa da cidade, por meio daquele rápido meio de transporte.
Os transportes eléctricos, uns iam da estação de Benfica à Praça do Chile, para outros só terminava a linha na Praça Duque da Terceira, vulgo Cais do Sodré. Era neste últimos que, diariamente viajava João Moisés, verdadeira aventura!
Embarcava na origem até ao apeadeiro do Príncipe Real, depois descia a pé toda a Rua do Século, onde na última, imediatamente à Esquerda, iniciava o seu dia laboral.
Recordando, em síntese, a comprida e aventurosa viagem diária num daqueles carros movidos a electricidade, por carris. de ferro, convém não deixar em claro a tentativa de reconstituição da sua rota:
- Partia da estação, seguia em linha recta, com volta por uma quinta abandonada, onde se encontra o Centro Comercial Fonte Nova, até Sete Rios, aí fazia a curva á direita, continuando pela Estrada de Benfica, passava ao Instituto de Oncologia em Palhavã, Praça de Espanha, junto aos jardins da Gulbenkian, atravessava a Duque D’Ávila e andava à volta de três partes do edifício do Quartel do Governo Militar de Lisboa, voltando à mesma Avenida, que percorria até Campolide, depois rumava à esquerda, para fazer a Rua descendente até atravessar a Avenida Joaquim António de Águia, dando às Amoreiras, que descia até ao Largo do Rato, onde passava até voltar à Rua da Escola Politécnica.
Finalmente a paragem, a que muito boa gente chamava o Jardim da Patriarcal.
Depois com aparente calma, descia a pé, toda a Rua do Século.
Há!... O trabalho já estava também a desencantar João Moisés, porque entretanto, como tantas visitas, o Sertório acabou por reentrar com a aquiescência dele próprio, visto o rapaz já ter sentido na pele, a situação de despedido do trabalho, depois porque não deixaria de ser bom rapaz e viria a ser bom ajudante. Verificado depois o mau carácter do novo ajudante, além de lhe falar um mínimo de conhecimentos, que deveria ter adquirido durante o tempo que ali trabalhara. Era só jeitoso a criar outras formas de poder esgueirar-se ao serviço que lhe competia.
Apesar de já ter sido despedido compulsivamente, por interferência do Moura Jorge, depressa se conotou com este, contando com a insensata colaboração do cobrador, elemento com muito jeito para intriga.
Tudo programado, baseado no visível derriço da Inglesa, João Moisés depressa se apercebera ser o visado. Com base em denúncias forjadas. Da amizade do chefe de alguns anos, este passara também a tratar com ele apenas os indispensáveis assuntos de trabalho.
Naturalmente, também a mulher da Grã-Bretanha lhe dera a volta à cabeça, pelo que com um despedimento, com o valor da consequente indemnização viria a calhar.
Assim aconteceu! Numa manhã, sem nada fazer prever uma tal iminência, o Moura Jorge deu em querer tirar esforço, dento do próprio escritório sob alguns olhares atónitos, do próprio João Moisés o que este, evidentemente, não consentiu. Dera-se quase simultaneamente a entrada do Guarda-Livros e sem qualquer consulta, sucedeu-se de imediato e desejado despedimento.
Podia ser considerado por justa causa, mas tudo ficou logo facilitado, foi atribuído em jeito de prémio, pelo acto de pura mesquinhez, uma quantia de vente e três mil escudos compensatórios, que à época podia considerar-se quantia elevada.
O gosto pelo trabalho, da parte de João Moisés não se alterou, embora lhe fosse logo atribuída a chefia, com a mesma remuneração, factor de evidente equação, mas de nenhum significado.
Em todo o processo o novo chefe, nunca foi ouvido e considerou ter havido muito de trama, seguida de injustiça. A haver despedimentos, pelo menos três elementos deviam ter entrada no pacote: O Moura Jorge, o cobrador e o novo ajudante.
Alguém não deixou de considerar esses factores, nunca se conformando com eles, além de ter continuado a contar com o reconhecimento inequívoco do gerente principal, de imediato iniciou a tarefa de tentar mudar de entidade patronal, deixar aquele edifício, onde em tempos muito recuados, esteve implantada a Capela das Mercês, e que o seu proprietário, tão mal, o ia transformando aos poucos, sem qualquer conceito de ordem estética.
Teria sido a mesma que dera nome aquele grande arruamento do famoso Bairro Alto, designado por Travessa das Mercês.

Daniel Costa




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