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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

BRANCO E NEGRO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Foto de Daniel Cordeiro Costa.
O humor do Vilhena
BRANCO E NEGRO
O Dafundo, como local de trabalho, continuava o máximo e o permanente optimismo irradiado por João Moisés era contagiante, capaz de ultrapassar todas as barreiras, que se deparam em qualquer ocupação laboral. Bem vistas as coisa apareciam muitas, que sempre iam sendo sanadas pessoalmente, com um certo jeito de negociação e o dever de cumprir bem o que prometera ao cliente.
No fundo, tratava-se da necessidade de atentar nos prazos, já que a mercadoria não saia de prateleiras, tinha de ser construída em várias etapas a serem ratificadas pelos clientes. Para além da fabricação havia o pressuposto de que cada obra tinha uma componente artística, que não podia ser ignorada.
Para isso, tinha sido criada a secção dos CONTACTOS, a funcionar também como a primeira linha crítica.
No caso dos livros, havia as primeiras provas a partir de granéis de composição tipográfica, pelo que existia uma sala cheia de linotypes de serviço, com os seus operadores, a funcionar por turnos.
Depois das provas revistas, outros especialistas formavam as páginas, para nova revisão.
Só então vinha a imposição, ou seja a formação dos cadernos em chumbo para a impressão tipográfica em papel, por máquinas próprias com o seu operador experimentado e especializado. 

Contava sempre com sempre com um ajudante, que estaria a fazer o seu estágio, para mais tarde também ele vir a ser oficial.
Para chegar á impressão, uma última revisão, era feita por revisores da própria empresa, para que tudo saísse certo.
Quando as tiragens atingiam números mais elevados, imprimiam-se as páginas em papel “couché”, o mesmo era fotografado e depois feita a montagem das películas.
Das mesmas faziam-se cópias em ozalide, formando o livro virtual para a aprovação do cliente, passando pelo filtro do respectivo elemento do CONTACTO.
As revistas, executadas nos mesmos moldes, por serem periódicos havia maior aceleração. Deslocava-se ali algum responsável pela edição, por qualquer falha da gráfica ou da própria editora, para maior eficácia e rapidez.
Atento aos perfis humanos, começou por atentar nas visitas do editor da “Branco e Negro”, o José Vilhena, o próprio titular da empresa, que indiciava um pouco da personalidade do seu criador.
Ainda por cima, com o Estado Novo em actividade, mal entrava no gabinete e sem conhecer ainda bem a pessoa, que o passara a atender, referia-se a qualquer estrutura administrativa, mesmo que fosse estatal e que englobasse o senhor António de Oliveira Salazar, como “aqueles tipos”, sempre de maneira sarcástica.
Devia ser um anarquista de primeira apanha!
- E se encontrasse ali, um informador da PIDE?
Nem pensar nisso era bom, a acontecer não seria inédito, também não lhe traria saúde, porque era assíduo “cliente” de Caxias, “refúgio” onde escrevia os seus livros mensais de bolso, para um público fiel, que os comprava via correio.
Deve ter-se dado uma empatia e na secção de CONTACTOS, o Vilhena era sempre bem recebido, homem de aspecto vigoroso, impecavelmente trajado, porém circunspecto.
Sabendo o que queria, tratava de assuntos importantes, como se parecesse uma criança grande, dizia o estritamente necessário, a que não seria alheio o seu permanente contencioso com o poder instituído.
Como encontrava simpatia, também sabia estar à altura e sempre correspondeu.
Invariavelmente deslocava-se ao Dafundo para tratar de assuntos relacionados com a feitura dos seus livros e passou a confiar a João Moisés, no seu jogo do gato e do gato, com a Censura até à última hora, do armazém onde eram entregues os livros, nada podia constar nem imaginar,
Chegava a indicação de pronta a obra e apenas nessa altura era comunicado ao chefe da expedição, onde devia ser feita a entrega.
A “Branco e Negro" fazia distribuição por algumas livrarias, e de imediato os exemplares eram apreendidos!
Os restantes estavam algures a ser enviados aos indefectíveis compradores, já com os mesmos pagos adiantadamente.
De seguida a autor e editor, ia uns dias para a prisão política de Caxias e era movida investigação:
- Onde estariam os muitos exemplares?
Na Bertrand & Irmãos, já se conhecia bem do assunto e os risinhos nunca se faziam esperar, porque chegava sempre a abordagem.
Normalmente a Censura, na sua usual estupidez, convocava o respectivo chefe de produção, que obviamente, não curava dum assunto a que podia passar sem dar importância. Tinha-se produzido o trabalho e lavava as mãos.
Um dia, depois de ser ouvido na comissão, este chamou João Moisés ao seu gabinete e deu-lhe a notícia, de que Censura estatal, depois do interrogatório inconclusivo, como sempre, planeava confrontá-lo, que se preparasse!
Juntamente com um sorriso ouviu logo:
- Nem sei de nada!...
- É isso afinal que tens para dizer – coitado de ti, nada sabes!...
Logicamente, não houve mais comentários, nem mais indagações.
À data José Vilhena, com o fim de desviar os seus trabalhos da Censura, que não passavam de sensualmente políticos, viraram para os de tema religião, mas: Dos três departamentos superiores, um tratava da religião!
De qualquer maneira o Vilhena era tido da secção, como um grande ponto, até pela sua finura. As instalações da editora, eram de requinte digno de nota.
Como gostava de boas mulheres, só tinha empregadas, novas e esculturais. O soalho da casa era alcatifado, com música em gravador espalhado na própria. Um primor de bom gosto em suma!

Os livros e postais da sua autoria, sempre de cariz sensual, tinham fama. Um dia um chefe de secção veio aos CONTACTOS e com certo jeito, insinuou a condição de João Moisés tratar muito com o autor, Dizendo ao que ia, se lhe pedisse, ele podia enviar uns livros para a malta.
Este duvidando, apresentou o pedido. E não é que o mesmo foi bem aceite?
- Passados dias, chegaram dois embrulhos, com a recomendação:
- Este é para si, o outro para os seus amigos!...

Daniel Costa

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

DEZOITO DE MARÇO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.Foto de Daniel Cordeiro Costa.
DEZOITO DE MARÇO
A empresa concessionária das listas telefónicas, detentora das Paginas Amarelas, a Celsa, do mesmo grupo da Bertrand & Irmãos, estava a enviar, diariamente, um grupo de pessoal a uma jornada guiada à impressora, afim de visitar e observar todas as instalações num curso, a que viria a chamar de reciclagem, visto que ficariam a entender melhor os mecanismos de fabrico, em livro, do muito trabalho de preparação dos anúncios e de toda a organização do mesmo.

A acção, como devia ser apoiada pela secção de CONTACTOS, por força teria de ser ali, ou mesmo superiormente equacionada. Não aconteceu e na primeira visita, sem a formalização de qualquer aviso, foi tomado o rumo certo pelo grupo, de que resultou a mobilização de João Moisés, sempre com disponibilidade para entrar em acção.
Aconteceu que no dia seguinte, tudo se manteve, João Moisés pelas quatro da manhã teve a felicidade de ser pai e… Chegou mais tarde.
Das chefias nada de resoluções, passar a manhã na missão de cicerone até era agradável, mas havia outras responsabilidades, que tinham de ficar adiadas e ali estava um outro grupo à espera que, sabendo do feliz acontecimento começou por: em coro apresentar, felicitações.
Resultou, sem tempo de ver o que havia de novo, ter de iniciar o dia mostrando, sector a sector, toda a fábrica gráfica.
Alguns dias, durou aquele trabalho, sem dúvida interessante, porém devia ser distribuído por todos os colegas, já que era de mais valia profissional, ou por isso mesmo, tornava-se didáctico, para toda a secção que liderava os CONTACTOS laborais exteriores da empresa, no fundo tratava-se de relações públicas.
O dia terá sido de facto, o dia mais marcante na vida de João Moisés, o inesquecível dezoito de Março de mil novecentos e sessenta e nove, ainda nesse espaço de apenas vinte e quatro horas, o vendedor que estabelecia os contratos com editoras, tinha em mãos a negociação de vários, com a conhecida empresa Selecções do Reader’s Digest, com uma reunião marcada com o administrador.
Não achou melhor do que apresentar o elemento, que acompanharia as obras. 
Apareceu à tarde no seu “Triunf” desportivo e descapotável, a sua imagem de marca, a comunicar o assunto a ser tratado de imediato.
Começou por haver recusa, foi apresentado o motivo, mas era importante para a empresa e não ouve outro paliativo que não a aquiescência.
O dia era de chuva torrencial, o resto da tarde acabou por ser preenchido com a magna reunião e acabaria com a concretização do importante negócio, que competia ao titular de vendas.
No dia seguinte, soube que precisamente no dia dezoito a revista “Plateia” impressa na casa, saiu com duas fotografias suas, com o colega de gabinete e Vitoriano Rosa.
O porquê conta-se a seguir:
- A Agência Portuguesa de Revistas, editora da “Plateia” aniversariava nos jardins do então famoso restaurante Quinta de S. Vicente, em Telheiras para onde, além de todos os empregados da empresa, muitos colaboradores exteriores da editora, tinham sido convidados.
Á secção de CONTACTOS da Bertrand & Irmãos chegaram dois, um era destinado ao António Alcaráraz, o outro ao chefe Fernando Sobreiro. Este não podia estar presente e delegou a agradável “tarefa” a João Moisés, já que era o substituto daquele, quando necessário, no acompanhamento da revista que semanalmente era impressa no Dafundo.
Funcionando como anfitrião da festa, Vitoriano Rosa, na prática o verdadeiro Director, já que o amigo, Major Baptista Rosa, sócio da Agência, figurando na ficha técnica, entregara ao jornalista amigo, toda a condução da mesma.
Nessa qualidade, acercou-se chamou o fotógrafo de serviço, mandou disparar o”flash” e saíram os documentos, a inserir na reportagem da festa.
- Comentário de António Alcaráz: 
- O Vitoriano é muito amigo, mostrou-o suficientemente, mas não haverá espaço, na reportagem para comportar este registo!…
- Queres apostar?
Mas, realmente as fotos saíram bem visíveis, no número da “Plateia” desse dia.
O Colega de gabinete e amigo António Alcaráz, por fazer parte dos soldados dos Sapadores Bombeiros de Lisboa, constantemente recebia chamadas para ajudar a socorrer casos de catástrofe na cidade, pelo que era forçoso ser substituído, por João Moisés, nos vários trabalhos que tinha em mãos.
Ocorreu várias vezes à Sexta-Feira de tarde, de ter de desempenhar a habitual tarefa, de em última hora, passar pela Comissão de Censura, em S. Pedro de Alcântara, com uma simples página semanal da revista “Plateia”.
Tratava-se de uma crónica critica de rádio, que um colaborador externo entregava, por regra, naquele dia da semana, por ser final de cada edição, para estar nas bancas todas as Terças-Feiras.
Nunca havia complicações naquele departamento, mas a censura prévia obrigava a esse procedimento, o trabalho continuava, porém a prova, essa ficava sempre arquivada, com o visto azul do lápis de algum censor de serviço.
Assim, nunca isso passou dum ritual, tanto mais que o Major Baptista Rosa, figurava como Director, o que era uma garantia, para que tudo corresse bem. Mas a prova tinha de ser lida antes, porque a censura prévia estava instituída.
O ritual dessas visitas da Sextas-Feiras cabia, por contrato, aos serviços da empresa impressora, devido a ser mesmo um serviço de última hora, dado que se evitavam perdas de espaço temporal, entregando a prova nos escritórios da Agência Portuguesa de Revistas, como acontecia noutros casos.
Embora este procedimentos, pertencessem aos editores, as casas impressoras estavam cientes dos problemas que podiam enfrentar com a Comissão de Censura, se algo corresse mal e que aquele reino achasse por bem intervir.
Ilustra-se com um caso ocorrido. Determinado cliente mandou executar uma gravura, crê-se que maldosamente, a mesma entrou na respectiva oficina, apenas o chefe ao verificar o original, viu o desenho muito bem feito, mas considerado pornográfico, o que poderia ocasionar sarilho.
Foi chamado e admoestado o responsável pela encomenda e de imediato recusado o trabalho.
Ter muitas encomendas era óptimo, mas sarilhos com a douta Comissão de Censura?... 
Abrenúncio!...


Daniel Costa

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O MUNDO EDITORIAL

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
O MUNDO EDITORIAL
Afinal o paraíso parecia estar no Dafundo, visto pelo positivismo, havia coisas engraçadas, como a referência africana ao gabinete, que um colega desfrutava, por vezes depois de uma troca de impressões atirava:
- “Bem tenho de ir até à minha sanzala”!... Efeitos de também ter feito a sua comissão militar em terras de Angola!...
Era a zona dos CONTACTOS onde diariamente se recebiam clientes, alguns de grande nomeada, pois apesar do serviço poder fazer deslocações ao encontro desses, é de crer que a própria estrutura da empresa os fascinasse, a ponto de quererem ser eles próprios a estabelecer canais de comunicação pessoal, respeitante aos seus trabalhos.
Por vezes havia outras razões, até as que se prendia com a Censura Estatal, sempre omnipresente em todo o mundo que fosse sítio, tanto mais onde se poderia passar ao papel propagadas contrárias ao regime vigente.
Não vivida, mas sabida de um companheiro. Fora abjudicada à empresa uma obra em livro que depois de editada, seria lançada no Estádio da Luz, por ocasião de um importante desafio de futebol. No dia aprazado não foi possível a entrega, aventaram-se as desculpas esfarrapadas costumeiras, adaptadas ás circunstâncias, no caso.
Na Segunda-Feira seguinte veio a saber-se, na clandestinidade, dos mesmos originais fornecidos Bertrand & Irmãos, apareceu o livro à venda durante esse jogo. 
O caso, depois veio a ser entregue à polícia judiciária que, munida de mandatos, passou revista a casas de funcionários da empresa. 
Sendo assunto recente, mas passado antes da entrada de João Moisés, para este funcionou apenas como interessante, a existência de nobreza daquela ocupação era feita de outras causas.
Era recorrente a visita, à média de duas vezes por semana, por um trio de Administradores e Editores da Palirex, que quando eram avistados, muitas vezes alguém dizia: Tens aí os Índios para tratar!
De facto um destes desenvolvia os assuntos como se estivesse a negociar mercadoria de ferro velho, era o encarregado de gerir a contabilidade, o outro desenhador alinhava muito com o contabilista. O terceiro era verdadeiramente escritor e jornalista, o que tutelava mais a parte editorial, era o Roussado Pinto, que lhe passou a dedicar uma verdadeira amizade.
Com essa editora veio a acontecer algo de lastimável. Estava-se na era dos saquinhos de cromos, que viriam a preencher cadernetas, cujas completas, davam direito a um brinde. No caso, era composto de uma bola do futebol profissional, pois tratava-se de fotografias a cores de jogadores de clubes, que iam entrar na Taça dos Campeões Europeus, onde se contava a do Sport Lisboa e Benfica.
Eram muitos os cromos e as entregas feitas por partes, já que se compunham de várias folhas de 70 x 100 cm, com a necessidade de muitas horas de guilhotina, para separa todas as efígies dos jogadores, que iam entrar em acção.
Certo dia, um dos motoristas ao dirigir-se a entregar uma tranche de cromos, teve um desastre mortal e como consequência, além da sua trágica morte, os coloridos papelinhos espalharam-se por toda a via.
Caro que a empresa tinha seguro a cobrir riscos desses. O assunto era do foro contencioso, mas o contabilista vislumbrando a oportunidade de fazer grande fortuna, reivindicava insistentemente junto de João Moisés ser indemnizado de todo o material, pelo preço que venderia nas livrarias, ao invés do custo de fabrico que lhe assistia por direito.
O acompanhamento da obra acabou por se tornar demasiado complicado, com esse lance.
O Departamento de contencioso, acabou por, tratar do infeliz caso, como lhe competia.
Outra empresa de razoável dimensão, que por ali passou, designava-se Editorial Aster, editando além de outros, bastantes livros didácticos. Terá sido aquela, que mais ficou na retina por muitos motivos, não só por acompanhamento de trabalhos, mas porque fora deles perduraram amizades pessoais.
Houve a feitura de um livro escolar, “Ciências da Natureza”, por três autores, Capitão Mascarenhas Barreto, Dr. Perry Vidal e Dr. Barrilaro Ruas. O livro, como muitas vezes acontecia naqueles tempos, ia sendo concebido aos poucos, até que apareceu a obra impressa.
Além deles e daquela importante realização, de que Aster era editora, e um importante cliente, pelo que foram tratados relevantes trabalhos, recebidos outros eventuais colaboradores e empregados, além do próprio Administrador. Este apareceu por diversas vezes, a verificar itens talvez mais sofisticados, como a obtenção de prazos.
Merece destaque especial, Selecções da Reader’s Digest, um outro dos melhores clientes, em toda a linha, que teve sempre trabalhos em andamento, obras de grande envergadura.
A maior lembrança era a conhecida, por todo o país, Livraria Popular de Francisco Franco, da Rua Barros Queirós, por se dedicar à venda e distribuição de material escolar. João Moisés trabalhos algumas vezes com Carlos Mota, um herdeiro, por casamento, de Francisco Franco, com a particularidade de ser filho do Dr. Góis Mota, um Presidente do Sporting Clube de Portugal, que teve o privilégio de dar o arranque, com o lançamento da primeira pedra, ao primitivo ao Estádio de José de Alvalade. 
No ano de 1968, apareceu um colega com um cartão, pelo qual havia desembolsado a quantia de quinhentos escudos. Tinha entrado num jogo de “pirâmide", pelo que desejava passar o bilhete para outras mãos a todo o custo. No fundo já estava arrependido da aquisição, embora o objectivo fosse o negócio.
O João Moisés entrara em jogos do género, mas implicavam apenas a aquisição de alguns postais ilustrados, até sabia que era interdito, por lei, mas isso era no fundo um passatempo engraçado, mas “brincar” com notas de quinhentos paus?
Na década de sessenta era elevado e caro, a negativa foi o caminho natural, para o seu espírito de mau comprador.
A entidade patronal seria sempre algo de inesquecível. Pertencer a um grupo daquela envergadura e as condições achadas, continuavam a ser coisa de um outro mundo, muito desejado!

Daniel Costa

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

DAFUNDO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Foto de Daniel Cordeiro Costa.
NO DAFUNDO
Num dia de Junho de 1968, depois de vários testes, João Moisés conheceu o inolvidável privilégio de entrar a trabalhar na empresa gráfica BERTRANDO & IRMÃOS, nas instalações do Dafundo. A mesma tinha Sede em Lisboa na Travessa da Condessa do Rio, na freguesia de Santa Catarina, onde teve toda a sua actividade durante bastantes anos.
Ter pouco mais de três anos de preparação no seio de uma empresa essencialmente de zincogravuras e logo ser colocado num departamento administrativo comercial do mundo gráfico, como uma fábrica da dimensão daquela, talvez a maior do género do país, com secções de tudo o que àquela arte diziam respeito, podia ser considerado um grande feito, por quem tinha ainda havia tão pouco tinha deixado de ser trabalhador estudante, objectivamente para se valorizar.
Ainda por cima teve de provar a um examinador credenciado estar apto para o cargo!
Era também uma oportunidade, para conhecimentos mais profundos e para prosseguir a veia policial, que lhe estava consubstanciada na alma.
Foi-lhe atribuído um gabinete que passou a partilhar com um outro colega, numa estrutura composta por um director comercial, o Dr. Brás Monteiro, um chefe de secção com a sua sala própria, para receber clientes mais sofisticados, ou para tratar de assuntos normalmente complicados, mais dois colegas na sua própria sala e uma estrutura, com secretariado de apoio, de que faziam parte uma jovem senhora e um paquete.
Depois havia os chamados serviços comerciais, compostos por homens de vendas, com a sua carteira própria, também secretariados, que ficaram sempre no que se designava Sede em Lisboa.
Só aqui estava já uma grande estrutura, depois havia toda a produção no Dafundo. A Direcção tinha no comando o Dr. Manuel Metello, proveniente da empresa Celsa, concessionária das listas telefónicas, que só a BERTRAND & IRMÃOS teria capacidade de executar.
A referida firma de origem brasileira, adquirira a gráfica, cuja produção se propunha expandir para o estrangeiro, contando já com um elemento da Hungria, a viajar por vários países.
No fundo, João Moisés parecia ter um mundo para trabalhar, tudo começou duma forma aliciante, nem ele mesmo, alguma vez ousara sonhar com tão boas condições, tanto mais que em breve tinha conquistado o apreço de todos, não só com quem tinha de relacionar-se por inerência, mas também com outros, pelo menos os do se nível, pois eram esses os interlocutores naquele trabalho, que visava estabelecer a ponte entre o cliente e as chefias das secções, por onde passava cada obra.
O núcleo já apontado, tomara por essa razão o sugestivo nome de CONTACTOS e tinha de ser por ali que passavam todas as obras a executar.
Nos dois gabinetes, aos quatros cabiam outros tantos pelouros em separado; trabalhos provenientes de editoras de livros, de revistas, de agencias de publicidade e do estado.
Tudo corria bem a João Moisés pois calhara-lhe no sector de livros, o que mais gostava, tinha sido um feliz acaso.
Mal tinha ocupado aquele trabalho e logo se deu em Lisboa, na Feira Internacional, à Junqueira, a FILGRÁFICA um grande certame internacional de Artes Gráficas, a que a empresa BERRAND & IRMÃOS, como grande empresa que era, tal como se afirmara no panorama nacional e tentando expandir-se internacionalmente, não se podia alhear.
Concorreu com o seu Pavilhão e nele dispunha de uma equipa, composta de uma senhora que agenciara, um homem de vendas e outro dos CONTACTOS, a dupla comercial era revezada diariamente, como era óbvio.
Logo num dos primeiros dias, foi a vez do João Moisés a quem calhou, como companheiro o Rodrigo (que veio a revelar-se fadista de nomeada), teve a oportunidade de ouvir bastante das suas aventuras, ficando a conhecer logo a sua fascinante personalidade humanística.
Seguiram-se inúmeros e variados trabalhos, como facilmente se pode calcular: Uma das entidades que primeiro chegou com obras ao cuidado de João Moisés foi Selecções do Reader’s Digest. Manuel Bertrand, um dos Directores de vendas, veio-lhe apresentar João Bruno, da produção daquela empresa. Seguiram outras como Palirex, a Íbis, a Meridiano, a Aster, a Francisco Franco, a Férin, a Início, a Galeria Panorama, a Branco e Negro e outras, quase todas desaparecidas na voragem dos tempos.
Muita gente de nomeada foi conhecida ali e não obstante os anos passados, alguns amigos do tempo perduram, não só colegas de trabalho, como propriamente outros que representavam clientes.
As boas memórias, os livros autografados, obras interessantes manuseadas e guardadas, são testemunho importante de como chegou a disfrutar de um ambiente de trabalho de excepção.
Embora a administração tenha criado condições sociais invulgares para os operários, como por exemplo a duplicação de subsídio para os filhos, aqueles tinham sempre de, na portaria mostrar as pastas, que normalmente serviam para transportar a refeição, ou roupas apropriadas para a laboração.
Sobre trabalhos e evolução dos mesmos, reparos haveria a fazer, porque naquele ano de 1968, entravam ali operários a mais e mesmo assim, faziam-se muitas horas extraordinárias, que tinham de se considerar fora de necessidade, o que já era recorrente no meio gráfico. 
Os próprios chefes pactuavam com a situação, porque estando isentos de horário, abandonavam funções a horas laborais certas, senão mesmo antes, sem nunca curarem de deixar alguém responsável, nem cobravam a ineficácia, no dia seguinte. Parecia agradar-lhe a situação, que na maioria dos casos funcionaria, como dado adquirido.
Quem trabalhava, de perto com os clientes sofria com tal desiderato, queixar-se seria perda de tempo, porque parecia descurar-se a manutenção do posto de trabalho, mesmo naquele tempo, ao invés de o estar a transformar mais próprio para um asilado. 
O que devia ser considerado um meio altamente social a preservar, por todos os meios, como o deve observar-se em qualquer empresa.
Apesar de tudo, continuava a correr de feição no sector administrativo intermédio.

Daniel Costa

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

RUA DO SÉCULO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Foto de Daniel Cordeiro Costa.
RUA DO SÉCULO
Apesar de tudo, o João Moisés mostrando, em muitas ocasiões o seu desagrado, foi descendo a longa artéria a que o Século, jornal de boas recordações, deu nome.
Enquanto ia respondendo a anúncios de emprego, em que se especializara outro matutino, o Diário de Notícias, que já saíra do Bairro Alto, deixando também a grandeza do seu título a denominar a respectiva Rua.
Uma vez que também agora havia uma acalmia no trabalho, talvez em virtude de as obras em tipografia, estarem aos poucos a declinar, por causa do avanço do offset, que dispensava zincogravuras e ainda porque o jornal A Capital, se foi instalar em edifício próprio, constituindo oficina, as horas extra deixaram de existir. Por outro lado o João já não tinha de perder tempo com ideias namoradeiras, tratou de cumprir um velho sonho, ter uma segunda ocupação, aquilo que se denominava um biscate.
Seguindo a sua intuição, tornou-se agente de seguros de vida, para uma companhia estrangeira. Tendo conseguido algum êxito, depressa passou a receber informações respeitantes a possíveis segurados, para trabalhar, do que ia tirando resultados, porque havia regular formação específica e sendo caso disso chegava-se a um acompanhamento por peritos.
Com a evolução produtiva, o responsável do núcleo tinha autonomia de fazer subir ao escalão do interessante factor comissões, afinal o sistema de remunerações, o que era estimulante. Estava a ser atractiva a actividade, por proporcionar mais contactos e a entrada num outro mundo sociológico.
No seguimento desse campo de acção, deu-se início a um novo tipo promocional, o de convites, para a presença em jantares com os próprios administradores, onde se podiam, em conversas, versar todos os assuntos e também seguros de vida. Normalmente terminava-se num “Pub”, onde uma bebida era o culminar de uma agradável sensação do dever cumprido.
Pode-se concluir um grupo de pessoas de profissões distintas, assim como de interesses pessoais diversificados. Num desses encontros um elemento mostrou cultivar o estudo da personagem, pela leitura das linhas da palma da mão.
Fazia-o apenas na perspectiva do entretenimento, João Moisés, afinal só acreditando no positivo mental, nunca deixava escapar qualquer ocasião que se lhe deparasse entrar na área do exotérico, dando a mão ao estudo do colega, teve a “revelação” de que trilhava um caminho de sucesso mas, nesse campo, as respostas a questões eram sempre inconclusivas, pelo que achou esse mas, a palavra adequada, para um final certo da conversa.
Não sendo crente, nem de longe das teorias, como cartomancia ou outras leituras, signos, etc. todas estavam no seu rol de bruxedos, nunca deixava de observar, nesse sentido, tudo o que lhe viesse estivesse à mão, como por exemplo o pesar-se naquelas balanças, que se encontravam das estações de comboios ou do metropolitano. Davam o peso de cada individuo, julgo que impresso no momento, num cartãozinho, rectangular com a efígie de um artista de cinema, em voga, no mesmo aparecia pré impressa uma sina, que mesmo sabendo-se aleatória, lhe merecia um estudo cuidado.
Tudo isto era visto com uma ideia contrária, tal como considerava o negativismo como uma vertente da fragilidade humana.
Todos estes pormenores traziam motivação superior, como se pretendia. Efectivamente os tempos livres eram preenchidos com anotações em fichas e outros impressos, que podiam vir a interessar na conversão de novos segurados.
Havia trabalho em permanência, como visitas aprazadas ou não, em horário pós laboral, inclusivamente em dias de Domingo.
Uma dessas saídas, para vários encontros, deu-se na Amadora e depois em Queluz, sendo regresso a casa feito a pé mais uma vez recordando e vivendo a ainda recente travessia pela Calçada do Monte.
Fora feita a longa viagem, sem custos entre Queluz e Benfica, depois de uma tarde bem preenchida, procurando a situação posicional de alguns arruamentos das duas vizinhas localidades de Lisboa.
O jornal A Capital, talvez positiva e prevista a evolução, deixou a Rua do Século, as zincogravuras para o mesmo passaram executadas em oficinas próprias, mas tinha chegado à facturação um trabalho acrescido, com a designação de Imposto de Transacções.
Na verdade, o então novo I. T. poder ser mencionado pelas letras do princípio, só por si era uma inovação, porque no tempo de Estado Novo, as abreviaturas eram tidas como perigos, dado que podiam muito bem ser iniciais de palavras “subversivas”.
João Moisés ia ficando por dentro do processamento do novo imposto. Na verdade o mesmo parecia uma aterradora nulidade, porque bastava entrar um impresso timbrado da firma e a guia de remessa do material expedido, levava apenas a menção do número atribuído ao contribuinte.
Pressupunha-se que o pagamento seria atribuído à firma que distribuía o produto acabado, mas sempre ficava a impressão de que o número na guia, depois na factura mensal, servia falcatruas.
Desde que o Martinho era o novo caixa, apesar de bom amigo, algo conjugado com os últimos acontecimentos lhe segredava que o Sertório, pelo contrário, não podia ser colega merecedor de confiança.
O desconfortável da situação, em conjunto com a notável irrequietude e desejo de voltar a subir na carreira, uma vez que podia acrescentar ao curriculum a valorização dos conhecimentos no tratamento do novo imposto, levava-o a idealizar novo emprego.
O patrão Francisco Bento, continuava a demonstrar-lhe grande estima, ao ponto de o levar a visitar o que viriam a ser as novas dependências do escritório, no que pensava interessante para o empregado de confiança.
Até gostou, tendo em conta ser o mesmo edifício, a antiga capela das Mercês que o proprietário, talvez a coberto de albergar uma esquadra de polícia, ia fazendo melhoramentos sem o risco de um credenciado arquitecto. Transformando-a na maravilha citadina dos mamarrachos.
Teria entrada na Rua do Século, onde ainda por alguns anos funcionou o grupo que editava o jornal que lhe dera nome.
Mesmo gostando do que lhe era dado ver e ficando eternamente grato ao senhor Bento, pensava consigo não chegar a trabalhar aí, o que aconteceu na realidade.
Iniciou logo em Maio as curtas férias a que tinha direito e foram essas, que lhe deram o ansiado tempo de ponderação e procura de novo trabalho.
Logo no mês seguinte, deixando ao seu sucessor, todos os assuntos na devida ordem, para o que trabalhou até ao último minuto, podendo ficar assim com gratas recordações e dizer adeus à longa Travessa das Mercês e ao mesmo edifício onde existiu a capela que, possivelmente lhe terá dado o nome.
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Daniel Costa

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

PARAÍSO DE BENFICA

Foto de Daniel Cordeiro Costa.
Foto de Daniel Cordeiro Costa.
O PARAÍSO DE BENFICA
Depois de João Moisés encontrar as condições económicas de entrar num clube mais avançado, o dos casados, que desde miúdo pensava ser o paraíso do Planeta Terra, o supremo eterno do mundo, visto que era o início de uma vida comum a dois, que mais tarde seria alargada e a dar-se uma separação só por interferência da irmã morte poderia acontecer.
Para o cumprimento perante Deus e os homens, a famosa igreja das Mercês sob o ministério do coadjutor do velho pároco, o Padre Marques Soares, deu-se a cerimónia religiosa do enlace.
Depois do longo, grandioso e tido como inevitável “buffet”, o casal viu-se, finalmente, a sós pela primeira vez.
Depois do transcendente acontecimento, a morada passou a ser nova, não muito longe do saudoso Café Paraíso de Benfica, talvez o mais antigo do Bairro e o último, do género, da Lisboa antiga.
Era bom presságio, para início de uma nova vida, tanto mais que se estava ali a desenvolver uma outra Lisboa, com um grande aglomerado de casas, tendo como base a Avenida do Uruguai e a então Estrada Poço do Chão, incluindo o que se veio depois a baptizar por Praça Artur Portela.
Acontece que a capital desse tempo, com a sua intrínseca grandeza, era em tudo uma sombra, a ponto de mesmo um faustoso lance matrimonial, não dar direito a mais de oito dias de férias, findas as quais João Moisés compareceu, obviamente, ao dever do serviço, não sem antes lhe vir à lembrança os tempos do Bairro da Graça, Aquela histórica casa onde deixou de viver e conviver, sobretudo do aparelho de telefone que a equipava.
Era composto por um mealheiro onde entrando, sob pressão, uma daquelas moedas de alpaca do valor de cinquenta centavos funcionava.
O sistema tinha a ver com a movimentação da casa e porque a economia do tempo obrigava a que fosse garantido o pagamento por quem utilizasse o serviço. No entanto em Benfica dispunha do seu telefone sem o incómodo do dispositivo.
Acabaram as caminhadas da Graça até ao posto de trabalho. Dali em diante, o paraíso de Benfica tornou-se, à ida para o escritório, ponto de partida para os muitos carros de tracção eléctrica que então serviam a freguesia, em acelerado povoamento. Como se isso não bastasse, relativamente perto desenvolvia-se a Brandoa na clandestinidade, cujos habitantes também ficavam sujeitos aquela estação para alancar o trabalho.
A azáfama de apanhar transportes, por toda a gente, começava logo pelas sete da manhã e as ruas que desembocavam próximo da igreja, onde quase na frente existia a estação e se iniciava a partida transformam-se, em verdadeiros formigueiros humanos.
Não podia dizer-se que faltavam meios, o que havia era já muita gente dependente deles, que dispunham apenas de uma via, a Estrada de Benfica, que começava na Avenida Duque D’Ávila, junto ao Governo Militar de Lisboa, acabando nas Portas, onde se inicia a Avenida Elias Garcia, já fora da cidade.
Começava então de manhã a verdadeira aventura de chegar ao trabalho, à hora nona ou antes, cuja abertura também fazia parte das obrigações de João Moisés.
Logo no primeiro Inverno, por sinal rigoroso, naturalmente por imperativos camarários, ou outros, uma vala foi aberta por toda a Estrada, então era ver carros eléctricos a preencher toda a via, em vários quilómetros de distância até à estação do metropolitano em Sete Rios, onde muitos mudavam de rota, para a baixa da cidade, por meio daquele rápido meio de transporte.
Os transportes eléctricos, uns iam da estação de Benfica à Praça do Chile, para outros só terminava a linha na Praça Duque da Terceira, vulgo Cais do Sodré. Era neste últimos que, diariamente viajava João Moisés, verdadeira aventura!
Embarcava na origem até ao apeadeiro do Príncipe Real, depois descia a pé toda a Rua do Século, onde na última, imediatamente à Esquerda, iniciava o seu dia laboral.
Recordando, em síntese, a comprida e aventurosa viagem diária num daqueles carros movidos a electricidade, por carris. de ferro, convém não deixar em claro a tentativa de reconstituição da sua rota:
- Partia da estação, seguia em linha recta, com volta por uma quinta abandonada, onde se encontra o Centro Comercial Fonte Nova, até Sete Rios, aí fazia a curva á direita, continuando pela Estrada de Benfica, passava ao Instituto de Oncologia em Palhavã, Praça de Espanha, junto aos jardins da Gulbenkian, atravessava a Duque D’Ávila e andava à volta de três partes do edifício do Quartel do Governo Militar de Lisboa, voltando à mesma Avenida, que percorria até Campolide, depois rumava à esquerda, para fazer a Rua descendente até atravessar a Avenida Joaquim António de Águia, dando às Amoreiras, que descia até ao Largo do Rato, onde passava até voltar à Rua da Escola Politécnica.
Finalmente a paragem, a que muito boa gente chamava o Jardim da Patriarcal.
Depois com aparente calma, descia a pé, toda a Rua do Século.
Há!... O trabalho já estava também a desencantar João Moisés, porque entretanto, como tantas visitas, o Sertório acabou por reentrar com a aquiescência dele próprio, visto o rapaz já ter sentido na pele, a situação de despedido do trabalho, depois porque não deixaria de ser bom rapaz e viria a ser bom ajudante. Verificado depois o mau carácter do novo ajudante, além de lhe falar um mínimo de conhecimentos, que deveria ter adquirido durante o tempo que ali trabalhara. Era só jeitoso a criar outras formas de poder esgueirar-se ao serviço que lhe competia.
Apesar de já ter sido despedido compulsivamente, por interferência do Moura Jorge, depressa se conotou com este, contando com a insensata colaboração do cobrador, elemento com muito jeito para intriga.
Tudo programado, baseado no visível derriço da Inglesa, João Moisés depressa se apercebera ser o visado. Com base em denúncias forjadas. Da amizade do chefe de alguns anos, este passara também a tratar com ele apenas os indispensáveis assuntos de trabalho.
Naturalmente, também a mulher da Grã-Bretanha lhe dera a volta à cabeça, pelo que com um despedimento, com o valor da consequente indemnização viria a calhar.
Assim aconteceu! Numa manhã, sem nada fazer prever uma tal iminência, o Moura Jorge deu em querer tirar esforço, dento do próprio escritório sob alguns olhares atónitos, do próprio João Moisés o que este, evidentemente, não consentiu. Dera-se quase simultaneamente a entrada do Guarda-Livros e sem qualquer consulta, sucedeu-se de imediato e desejado despedimento.
Podia ser considerado por justa causa, mas tudo ficou logo facilitado, foi atribuído em jeito de prémio, pelo acto de pura mesquinhez, uma quantia de vente e três mil escudos compensatórios, que à época podia considerar-se quantia elevada.
O gosto pelo trabalho, da parte de João Moisés não se alterou, embora lhe fosse logo atribuída a chefia, com a mesma remuneração, factor de evidente equação, mas de nenhum significado.
Em todo o processo o novo chefe, nunca foi ouvido e considerou ter havido muito de trama, seguida de injustiça. A haver despedimentos, pelo menos três elementos deviam ter entrada no pacote: O Moura Jorge, o cobrador e o novo ajudante.
Alguém não deixou de considerar esses factores, nunca se conformando com eles, além de ter continuado a contar com o reconhecimento inequívoco do gerente principal, de imediato iniciou a tarefa de tentar mudar de entidade patronal, deixar aquele edifício, onde em tempos muito recuados, esteve implantada a Capela das Mercês, e que o seu proprietário, tão mal, o ia transformando aos poucos, sem qualquer conceito de ordem estética.
Teria sido a mesma que dera nome aquele grande arruamento do famoso Bairro Alto, designado por Travessa das Mercês.

Daniel Costa




segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

SANTA ENGRAÇA



Foto de Daniel Cordeiro Costa.
SANTA ENGRÁCIA

O Bairro da Graça, na sua vetustez, pertence á freguesia de Santa Engrácia. Com outros limítrofes, formam um conjunto da Lisboa antiga, digna de ser visitada demoradamente.
No Largo onde se formavam os carros eléctricos, um dava a volta partindo, para o Norte e outro para o Sul ambos, no se vai e vem, em jeito de circunferência por Campo de Ourique. Tinha sempre encontro marcado, em cruzamento, com partida daquele local, passando no Largo do Calhariz, que fica paralelo à Travessa das Mercês.
A caminho do trabalho, João Moisés sempre passava por ali, onde se formavam havia taxativamente muita gente a acotovelar-se, esperando a chegada de um veículo de transporte, depois uma interessante luta para entrar.
Decididamente, após andar cerca de mil e quinhentos metros para chegar aquele ponto, achava mais prático e rápido descer a Calçado do Monte e fazer todo o trajecto locomovendo-se a pé até ao escritório, nos confins do Bairro Alto.
Nesse trajecto atravessava todo o Rossio onde podia ver as letras luminosas do edifício de funcionamento de uma livraria de Diário de Notícias, no mesmo se projectavam essas a dar algumas notícias do dia. Uma espécie de Internet desses tempos. Já ouvira referenciar antes a notável cena.
Estava a morar numa casa onde, com um simples assomar à janela, usufruía a grande luxo de avistar o Tejo, mas a Graça continuou sempre a conter no seu perímetro muitos mais sítios do maior interesse, como o Museu da Água, na Rua do Alviela, à Calçada dos Barbadinhos.
Na freguesia vizinha de S. Vicente de Fora, fica a Igreja de Santa Engrácia do famoso Panteão Nacional. Na altura pelo facto da velha expressão, em certos casos de lentidão dizia-se muito: “É como as obras de Santa Engrácia”!... De facto a sua construção teve início em 1862, no lugar de uma antiga capela com a mesma designação e por vicissitudes várias, só terminou no ano de 1966.
Muito estará por realçar daquele outro centro de Lisboa, como o famoso Largo da Graça, situado numa das colinas da cidade com os seus com os seus naturais miradouros.
Na altura e ainda por muito tempo funcionava ali o grande Quartel da Graça, perto do Miradouro do mesmo nome.
Começa aí a Calçada do Monte, mais propriamente uma rampa que leva à Mouraria, seguindo depois para a Baixa.
Aproximava-se o fim da morada naquela distinta zona, que tem também como vizinhança a velha Alfama, por via de um futuro casamento. Viver a dois, segundo a lei da Santa Madre Igreja e a tradição, era a maneira libertária de se poder viver com uma mulher e gerar filhos, com a aprovação dos deuses.
O frenesim da cartomancia e as pressões tentaram influenciar as escolhas. Jogavam-se boas indicações económicas efectivas ainda, com laços familiares, mas a Rosário tornara-se coisa séria, a levar até ao fim do mundo.
O João Moisés cortara com todas as hipóteses, onde houvesse dúvidas sobre a “honra feminina”, uma condição que lhe era muito cara!... Usava-se!...
Assunto arrumado, o pensamento continuava no trabalho e nas muitas incidências no seio do mesmo, sobretudo no que dizia respeito a gráficas, afinal o mundo que pensava ter merecido conhecer. Parecia estar ali a génese de toda a actividade humana, era no fundo aquele o princípio do desenvolvimento da comunicação de massas, que o homem sempre desejou.
Muitas acções laborais, sem o parecer, mereciam muita atenção de quem alimenta os seus íntimos pensamentos, que a outros podiam parecer inócuos. Pobres deles!... Podia pensar-se, se o tempo não fosse sempre o grande mestre.
Estava-se no tempo do partido único, corporizado na designação de Acção Nacional, donde emanava o Estado Novo, comandado pelo tal “lente”, senhor António de Oliveira Salazar, com olhos e ouvidos a envolver toda a sociedade, como o caso que se passou na Graça. O João Moisés encontrou casualmente um indivíduo que fora seu colega na tropa, o que mereceu a confraternização à roda de uma mesa de Café.
Ao contrário do que era conhecido, numa demonstração provocatória, o antigo colega deu em representar de ébrio para o empregado que servia e sem que nada o fizesse prever, com ameaças de mau gosto, tirou do bolso e mostrou o seu cartão de informador da temível PIDE.
O revelado informador nunca mais foi encontrado, ficou a lição. Naturalmente o que interessava era incutir o medo.
Aconteciam muitos casos a indiciar o objectivo controle da polícia política, como o dos anúncios de jornal a promover o recrutamento de pessoas, que tivessem feito a vida militar, para as várias tarefas nas empresas e sobretudo nas universidades.
Tinha-se iniciado uma forte emigração, onde funcionava muito a clandestinidade, tráfico a que muitos se dedicavam e que conviria ao governo de Salazar. Só alguns iam parar a prisões políticas. Era dado o sinal contrário através de denúncias.
Era neste ambiente que passava uma certa corrupção, sempre em pequena escala. Afinal o chefe da oficina daquela empresa gráfica, além de inegável competência técnica, era altamente especializado em procurar alinhamentos por baixo, para melhor fazer o seu trabalho de controlo, o que lhe dava espaço para o seu “negócio” paralelo interno.
Nem tudo chegava ao filtro investigador de João Moisés, muita acções levadas a efeito, como o afã de angariar trabalhos, nomeadamente de offset, sabendo que a firma não tinha a necessária dimensão para os executar, mas feitos externamente de certo que trariam boas comissões, tanto mais que chamava a si a orientação.
A João Moisés cabia estabelecer todos os contactos e podia apurar, que os desenhadores de fora eram muitas vezes chamados a colaborar. Os clientes ouviam por tradição do grande chefe – “esses senhores debitam alto” – pelo que não sabia o que iria custar cada trabalho de desenho.
Filtrando também por ai, os respectivos artistas tinha de, à partida adicionar o custo de uma comissão destinada ao chefe, mesmo que a obra fosse de pequena dimensão.
Com todas as mais valias proporcionadas, por todos os bónus indevidos, nunca perdia ocasiões de afirmar que a entidade patronal não o remunerava consoante o seu valor técnico, porém a certa altura apresentou a demissão e de imediato foi vê-lo, à partida sem fortuna pessoal, a adquirir a sua própria empresa gráfica.

Daniel Costa

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

ARCO VOLTAICO

Foto de Daniel Cordeiro Costa.

ARCO VOLTAICO

O artigo gramatical zincogravuras, à simplificação de um vasto mundo de linguagem, que veio a tornar-se acessível a João Moisés. Palavras como foto, correspondem a reprodução em zinco de uma fotografia e a zinco se o original for só traço; foto zinco se o mesmo desenho engloba os dois. Termos iniciáticos de um outro mundo, dentro de um universo de uma grande cidade, como Lisboa.
Arco voltaico volta à ribalta, associando-se às novas tecnologias, mas na reprodução gráfica, pelo menos na gravura era indispensável, pois quando “fechado” por uns elementos, designados “carvões”, lançando uma luz muito intensa sobre as películas dos desenhos ou fotografias, acopladas à chapa de zinco, onde pela acção ficavam impressos.
Embora houvesse muitas actividades laborais interessantes, por onde uma mente sempre ávida de sabedoria entrava num meio ideal para o efeito, havia outro mundo, o da actividade particular, que se tornara paralelo.
A vida amorosa tinha de estar sempre em destaque, no entanto naquela casa, no meio de dezenas de pessoas, não existia nenhuma do sexo oposto para alegrar mais a vida, claro que João Moisés não de poder apelidar de gela corações, mas a sua juventude não concebia a ausência de comprometimento com alguma mulher.
Mesmo em casa o amadorismo da cartomancia versaria muito esse tema, que depois acabada por ser aflorado na conversação., quando se procurava saber, em vão, como andavam os amores, com a estimulações destinadas a saber algo mais do pouco que se desvendava.
Estímulos, para quê? – Se os mesmos existiam sempre, a divulgação é que era considerada desnecessária.
Mas era a certa altura de todos os rompimentos. Chegara-se a empregado de escritório, era o acesso a um patamar mais elevado socialmente, isto tinha de pesar muito no capítulo dos namoricos.
Este pensamento inevitavelmente levado à prática deu como resultado, rompimentos e ao derriço com a Rosário.
De muitas policromias se foi construindo o ambiente, até chegar a uma situação em que a desfloração ainda estivesse reservada, o que mesmo nos anos sessenta, para certas idades, acabava sempre por ser tida como problemática. Só a partir daí foram procuradas outras qualidades de interesse.
É facto que atravessava uma idade propícia de pensar em casamento e como empregado, tinha ascendido a uma posição para proceder a uma escolha com um olhar de futuro. O regresso ao fim do dia acabava por ser encarado com certa modéstia, por João Moisés, mesmo não deixando de haver alguma sobranceria. Ganhara ascendente como familiar, entre outros hóspedes que eram menos da casa, uma vez que se revelara pessoa de valia. 
No próprio escritório da Travessa das Mercês, já tinha chegado à consideração de um dos gerentes, Chico Bento que procurava coordenar toda actividade, o outro Robert cuja entrada era sempre tardia, sentando-se de imediato numa banca de trabalho, que tivera o privilégio de escolher, sem se dar por ele, apesar do seu alto e anafado porte, só se deixando notar pela fumarada, saindo do sacramental cachimbo, que sempre usara como imagem de marca.
Um dia João Moisés ao assistir a toda a bem concebida exposição de um novo cliente, fez o seguinte comentário, depois da sua retirada – “hum!... Este não me comprava os frangos”!... O trabalho teve execução, porém o pagamento acabou do esquecimento dos deuses!...
Chico Bento que fixara aquela frase, tique de origem e muito próprio do funcionário, dali em diante, as conversações sobre a acreditação de nova alteração de ficheiro, passaram a ter o protagonismo deste, com “direito” a veredicto final a entrar em conta.
Chegara a um posicionamento tal, para o que não contribuíra, dada a natural modéstia, mas em que muitos eram culpados de erros, em toda a linha por onde tinha passado a obra, sempre acompanhada de boletim especificando a mesma, porém João Moisés granjeara tal ascendente, que nunca podia ter culpas perante o gerente.
Aconteceu um dia ter havido engano em todas as medidas para zincogravuras, vindas da encomenda de um cliente. Um novo produto a lançar no mercado e a ser publicitado por toda a comunicação social. Foi admitido pelo empregado de expediente de escritório, que o erro de medidas tivesse tido origem no boletim de entrada elaborado por ele.
Não se deu novo tsunami em Lisboa, mas ia caindo o resto do Carmo e da Trindade, situados ali perto. Só fulanos de tal e tal podiam arcar com as culpas, pois mesmo que se estivesse passado algo de mal na entrada, eles tinha obrigação de notar o erro, já que desde sempre eram possuidores das medidas da mancha de cada periódico, pelo tamanho do respectivo grupo de colunas apalavradas, a preencher com aquela promoção.
Foram revistados os locais, no escritório, onde havia a possibilidade de haver arquivado algum documento elucidativo, pois ali trabalhava-se com método. O resultado era o esperado, o lapso fora mesmo originado na entrada.
Como não podia ser dito, ficou só a certeza e um interior acto de contrição a servir para evitar novos deslizes.
Acontece que o facto originou grande prejuízo e algum atraso. Tudo imprevistos, originando uma reunião entre gerentes das duas empresas, onde tudo foi sanado com a divisão de perdas.
Depois disso, o gerente apresentou um velho amigo e cliente, este trazia apenas um pequeno original, destinado a mandar executar uma zincogravura a imprimir numa ampola para medicamento: Apesar da recomendação de ser único e muito importante e das inúmeras e constantes recomendações de Chico Bento: 
- “Um original destinado a executar uma gravação tem de ser sempre tratado como peça única”, o mesmo foi bem guardado, mas esquecido.
Só num sonho mais tarde, se fez luz sobre aquele assunto. Um lance, podia dizer-se providencial, por isso mesmo a causar natural estranheza!...
Havia que tomar medidas, nada melhor do que pôr o gerente a par da situação, até porque tinha sido ele mesmo a recomendar o subordinado.
A conversa tida, não obstante, foi cordial. Estava resolvido, tudo se passar perante o cliente, como se o amigo de nada pudesse saber.
Ao telefone, o tratamento do assunto também acabou por correr bem, afinal arranjava-se um outro desenho, entrando o trabalho no circuito normal.
Este gerente, tinha de ser considerado um amigo, apesar do chefe de escritório só se lhe referir como “o carroceiro”, geria a empresa com uma maneira peculiar de tratar bem todos os assuntos respeitantes ao funcionamento da mesma.
Um dia apareceram uns senhores, iam recomeçar um Jornal, que tinha já circulado com a denominação de “A CAPITAL”, um deles era Maurício de Oliveira, que dirigia a “Revista da Marinha”, que sendo impressa em tipografia, como a maior parte, senão todos os periódicos da época, era indefectível cliente daquela casa com entrada pela Travessa das Mercês, o João Moisés foi chamado à reunião, que acabou como se ali inesperadamente, tivesse chegado a sorte grande.
“A CAPITAL” ia renascer na Rua do Século, com sede na frente do velho matutino. Ficava quase imediatamente ao virar da esquina, sendo impresso nas oficinas do saudoso “SÉCULO”.
Por ser vespertino e de formato diferente, a nova unidade de comunicação da tarde, não fora considerada concorrente.
Todas as zincogravuras eram executadas sob as ordens do apodado “carroceiro”, para o que havia de estar operacional, nem que tivesse que ser as vinte quatro horas do dia, se necessário, ficando sempre a funcionar como garante o responsável pelas entradas e saídas dos trabalhos.
Isto originava muitas horas extras, por vezes não sobrava mais do que quinze minutos para a refeição. O mesmo se passava depois do horário convencional, a saída do escritório só acontecia depois de um telefonema para o Jornal, pois este pelo caudal de trabalho tornara-se uma parte relevante da laboração.
Há a notar a curiosidade do Bento, que não tinha hábitos de leitura, a partir de então, não desaproveitava qualquer oportunidade de avançar ser “A CAPITAL” o melhor diário em circulação.
No meio dos operários, havia um trabalhador, ajudante embora não sendo muito novo, na secção de montagem das gravuras, que era filiado na “Legião Portuguesa”, uma unidade do “Estado Novo”.
Era assim; aderiam muitos dos que ficavam livres da tropa, como era o caso, para ganhar direito à isenção de pagamento da taxa militar anual, existente na época.
De quando em vez, lá vinha o chamamento para estar presente numa parada. O homem apareceu algumas vezes vestido a rigor, com o seu fardamento castanho da praxe às apresentações periódicas na unidade, para o que a empresa era obrigada a dispensá-lo.
Esse rapaz não passava de ajudante mas era sociável, a tal ponto que por vezes aguentava ditos sobre a filiação e o garbo que a farda lhe conferia. 
A sua índole de vive e deixa viver, dava para servir em muitas circunstâncias, apesar de haver um funcionário de serviços externos para recolha de obras e posteriores entregas, surgiam telefonemas de solicitações de imediatismo e o patrão Bento logo se encarregava de chamar aquele empregado.
Se fosse de tarde, era quase certo o mesmo tirar o tempo necessário, para passar num daqueles cinemas rascas de sessão contínua, normalmente o Olímpia da baixa de Lisboa, onde havia vários e assistir a uma exibição.
Depois, muito naturalmente, dando conta no escritório do trabalho que fora executar, entrava na secção na hora de fechar.
Daniel Costa